quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Os dez reais

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"Poxa! Estou morrendo de fome! E justo agora não tenho nada na carteira... só 50 centavos! Que droga... vou ficar sem almoçar... acho que aguento o trampo até as 6..."

Dizia intrigado o homem de 36 anos, alto, bem vestido, casado e muito bem sucedido na vida. Ele estava naquela rua movimentada do centro da cidade, era perto de seu escritório, era entre 1 e 1:30 da tarde, a hora em que todos os seus colegas e as pessoas que trabalham por ali, saíam para almoçar. Era um cara bem esquecido, e já estava um tanto endividado com seus colegas de tanto esquecer o dinheiro para o almoço e pedir para eles pagarem... e sempre esquecia de compensá-los. Alguns de seus colegas até diziam que pagariam para ele um almoço, mas ele sabia que iriam cobrar mais para frente, ou deduzia isso... o homem era de fato bem egoísta. 


Ele passava na frente do restaurante que sempre almoçava e dava um sorriso sem graça para seus colegas que estavam se sentando a uma mesa para almoçarem, e depois saía dali para andar um pouco pela cidade, já que até as 2 horas da tarde estaria livre. 
10 reais. Esse era o valor que ele pagava para almoçar. Se sentava em um banco em uma praça e começava a pensar na vida. 

"Só precisava de 10 reais... ai, que fome..."

Pensava ele. Ele tinha uma Hilux, um apartamento na cobertura de um bairro nobre, uma casa de campo, uma casa de praia, três TVs de LCD, um computador para cada membro de sua família, ou seja, 5, também tinha uma lancha, uma casa em um sítio que tem cavalos, vacas, lago, piscina... e uma infinidade de... "Pra que tudo isso mesmo?"... pensava. Talvez era o fruto de seu trabalho. Porém ele havia percebido que não havia usado nem metade de seus bens, e que eles não lhe faziam falta, pois não os usava. Ele ficava a rir de si mesmo, ao mesmo tempo que se sentia miserável por não ter 10 reais na carteira, se sentia poderoso por ter todas aquelas coisas. "Droga! Nessas horas tudo aquilo não serve pra nada!" Dizia em um tom de voz relativamente alto, e um tanto irritado. 
Um homem bem idoso passava por ali perto, andava devagar, parecia estar muito cansado, era vendedor de picolé, usava um boné velho, roupas surradas, tinha uma pochete velha no cinto e estava sorrindo para a netinha que o acompanhava durante o trabalho. Ela se divertia apertando a buzina a ar do carrinho de sorvete. 


Ele olhava para aquele avô e sua neta. E pensava no tão pouco que aquele avô fazia para que sua neta pudesse se divertir, e no exagero que ele fazia para que seus filhos sorrissem daquela maneira tão verdadeira. O dia estava frio, provavelmente aquele velhinho não havia vendido muita coisa. O homem se pôs a pensar novamente. A neta queria um algodão doce que uma mulher vendia naquela praça, o avô logo ia sorridente atender sua querida neta, e então abria a pochete. Um saquinho daquele algodão doce custava 1 real. O sorriso do velhinho se transformava em uma expressão triste, pois só tinha 50 centavos, tentava negociar, mas a mulher não aceitava. Sorria para sua neta fazendo um doce carinho na cabeça dela, que ficava um pouco chateada, mas dava um abraço no seu avô e dizia que poderia ser em uma próxima vez. 
O homem se levantava. Via no carrinho escrito: 'R$ 0,50 cada picolé, qualquer sabor'. Se aproximava do velhinho e perguntava animado:

"E aí? Que sabor de picolé o senhor tem aí?"

O velhinho olhava surpreso, pois o dia não estava muito agradável para se tomar um sorvete. Mas ele logo tratava de mostrar os sabores com um sorriso, o homem também sorria. Escolhia um de leite condensado, e entregava os 50 centavos que tinha na carteira para aquele velhinho, agradecia e ia embora. O vendedor de sorvetes por sua vez, ficava com um sorriso animado no rosto e dizia já comprando o algodão doce:"Olha só que sorte! Vai ganhar um algodão doce hoje!" Sua neta ficava com uma alegria contagiante no rosto. 
O homem dava uma rápida olhada para trás, apenas se sentia feliz ao ver a garotinha ganhar o algodão doce do avô. Ele simplesmente parava, e logo percebia que além de ter ajudado alguém, havia ganhado uma refeição... tudo bem que era um picolé... e o dia estava frio... mas já era o bastante para saciar um pouco a fome. Naquele momento os 50 centavos eram mais valiosos do que os 10 reais que tanto queria.




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quinta-feira, 12 de agosto de 2010

O mundo de Kevin

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"Imagine um mundo de escuridão, onde você não vê nada além da cor preta em toda a sua volta; um mundo de silêncio, onde você não escuta seus passos, a sua voz, não escuta nada. O único jeito de 'ver' esse mundo é sentir, sentir o cheiro, o gosto, a temperatura, a forma e a consistência das coisas. Esse é o mundo de Kevin."
Eram quase 12:30 da tarde daquele sábado fresco e ensolarado. Era o primeiro dia daquelas férias de Kevin, ele estava cansado por ter trabalhado durante 6 meses todos os dias, até mesmo nos fins de semana. O rapaz de 26 anos era um sommelier, ganhava bem, tinha uma vida confortável ao lado de sua mãe em uma casa não muito longe da cidade, o lugar era bem arborizado, tinha uma grande área aberta com a grama muito bem cuidada, haviam alguns cavalos, cães, aves e também algumas cabras. Ele estava do lado de fora, deitado em uma rede que estava presa entre duas grandes árvores de seu jardim, seus olhos estavam fechados, porém não estava dormindo, apenas apreciava a brisa fresca e leve passar, sentia o leve calor do sol em seu rosto, e também o doce aroma das frutas e flores que cresciam no jardim. Logo Kevin sentia o cheiro delicioso da comida de sua mãe, que estava na cozinha preparando um belo almoço para ambos, ela estava o observando da janela, sorrindo enquanto colocava água na panela. O jovem sommelier engolia a saliva, pois estava faminto e aquele aroma fazia aumentar ainda mais o apetite, parecia ter frango, batatas, cebola, tomate seco, arroz temperado, e outras coisas que tinham um delicioso aroma apetitoso. 



Kevin sentia a mão quente de sua mãe tocá-lo carinhosamente nos ombros, ele abria os olhos e dava um sorriso, sua mãe retribuía dando um outro, e assim andavam para dentro de casa abraçados nos ombros. Dona Mariella era uma mulher de 56 anos, seus cabelos eram grisalhos, era rechonchuda, possuía as bochechas rosadas e uma pele pálida, uma mulher de meia idade que amava seu filho mais do que tudo, e que adorava preparar uma refeição para o mesmo. 
Ao entrar naquela casa sentia-se um clima de paz e tranqüilidade, Kevin estava muito feliz, e isso fazia sua mãe ficar feliz. Ambos sentavam-se à mesa para almoçarem, próximo havia uma porta de correr que dava para o quintal e churrasqueira da casa, e de dentro da cozinha podia-se ver aquele belíssimo jardim. O sol adentrava por aquela porta, Kevin sentia aquela temperatura agradável tocar suas mãos que estavam sobre a mesa, o cheiro das árvores, flores e frutos se espalhavam dentro da casa pela brisa morna que passava pelas janelas, não havia momento mais aconchegante e delicioso de ser apreciado do que aquele, era realmente um almoço perfeito. 


A cozinha estava limpa, todas as louças estavam lavadas, secas e guardadas, o que sobrou daquele almoço já fora guardado para que assim pudessem apreciar aquela deliciosa comida mais tarde na janta. O relógio marcava 3:30 da tarde daquele sábado, o sol estava um pouco mais forte, mas ainda assim agradável. Dona Mariella estava sentada a mesa na qual haviam almoçado folheando alguns documentos, ela usava seu antigo óculos para enxergá-los bem, e parecia anotar algumas coisas em um papel, eram arquivos e documentos do trabalho de Kevin. Ela o ajudava bastante, pois trabalhava com ele, ela que o levava para os clientes, ela ajudava na escolha dos vinhos, ela fazia a parte mais burocrática no trabalho do sommelier. Kevin certamente tinha uma mãe admirável. 
Mariella olhava o relógio e passava a mão carinhosamente no filho que estava deitado no sofá da sala tirando um cochilo para acordá-lo, tinham que ir na cidade fazer algumas compras. Não demoravam muito entravam no carro, Kevin parecia sonolento e preguiçoso, sua mãe que estava já no banco do motorista dava uma risada e bagunçava os cabelos castanhos do filho, como se dissesse para parar de ser tão preguiçoso, Kevin apenas sorria passando a mão em seus cabelos logo em seguida. 
A cidade era um lugar bem diferente, a energia que era projetada não era tão tranqüila igual em sua casa, o cheiro era diferente, parecia ser sujo, não se sentia a luz quente do sol naquele lugar devido aos prédios, podia sentir a presença de inúmeras pessoas ao seu redor caminhando, a cidade, para Kevin, era um lugar rude e triste. 


Por sorte havia uma vaga para estacionar o carro em meio aquela rua movimentada. Saíam do carro, dona Mariella como sempre, andava segurando seu filho, dessa vez ambos estavam com seus braços entrelaçados e assim enfrentavam a grande multidão. A jornada na cidade começava em um banco, dona Mariella pagava as contas e também sacava algum dinheiro; depois iam para um supermercado, compravam produtos de limpeza, alimentos, e várias outras coisas; assim iam para uma loja de sapatos, pois Kevin estava precisando de alguns novos, e Mariella ajudava-o a escolher, o rapaz gostava dos mais confortáveis sem se importar se eram bonitos ou feios; passavam em uma lanchonete para comerem alguma coisa pois estavam famintos e demorariam um certo tempo até a janta, Kevin não gostava da comida da cidade, o gosto e o aroma não tinham aquele toque de amor e carinho que ele sentia da comida de sua mãe, mas mesmo assim ele gostava de apreciar, gostava de conhecer novos sabores; o último lugar era a lavanderia, havia deixado no dia anterior cobertores, lençóis e edredons nos quais eram mais complicados dela lavar, assim os recolhia, Kevin carregava as compras mais pesadas daquele dia, sua mãe o segurava pelo braço e assim caminhavam para o carro.
Dona Mariella soltava por um breve momento seu filho para que pudesse pegar a chave do carro em sua bolsa, o rapaz não saía do lugar, apenas virava para trás pois havia sentido um cheiro agradável e doce passar, curioso dava uns dois passos na direção da fonte daquele cheiro, e sem perceber trombava com um homem que carregava caixas com conteúdo frágil. Dona Mariella escutava um barulho de vidros quebrando, e rapidamente olhava para o lado, via seu filho sentado ao chão e as compras para fora das sacolas, via um homem irritado reclamando e lamentando sobre a vidraçaria que ele carregava na caixa... o homem xingava Kevin de tudo quanto é nome, o empurrava bruscamente como se estivesse desafiando Kevin para uma briga, o rapaz parecia perdido da situação, tinha medo de ficar de pé, sabia que aquele homem o derrubaria de novo. Correndo, Mariella afastava o homem alterado de seu filho tentando acalmá-lo, e depois ajudava seu filho a se levantar, ela não dizia nada, apenas dava um abraço forte no mesmo e fazia um carinho em sua cabeça, e, visto que estava mais calmo, ela sorria, e depois olhava para o sujeito, que estava impaciente pois queria resolver aquela situação na qual ele achava que Kevin tinha culpa. De uma forma calma, Mariella dizia segurando no braço de seu filho olhando fixamente para o sujeito raivoso:

"Imagine um mundo de escuridão, onde você não vê nada além da cor preta em toda a sua volta; um mundo de silêncio, onde você não escuta seus passos, a sua voz, não escuta nada. O único jeito de 'ver' esse mundo é sentir, sentir o cheiro, o gosto, a temperatura, a forma e a consistência das coisas. Esse é o mundo de Kevin."

O homem ficava confuso, ria do que ela dizia, debochava dos dois, e aquela dedicada mãe completava:"Kevin é cego e surdo desde que nasceu, senhor, por favor, não fique irritado com ele." O sujeito ficava pasmo por uns instantes, e depois muito arrependido, ele pedia desculpas, e se abaixava pegando as coisas que haviam caído.
O doce aroma parecia se aproximar um pouco, Kevin virava o rosto a procura da fonte, ele não podia ver, mas era uma bela jovem de longos cabelos loiros naturais ondulados, aquela situação havia chamado a atenção de algumas pessoas, inclusive da graciosa moça do doce aroma que tanto agradou o olfato de Kevin. Algumas pessoas ajudavam Mariella e seu filho a colocarem as coisas no carro, por um momento Kevin sentiu aquele doce cheiro ficar bem ao seu lado, era a moça que o ajudava a entrar no carro, não sabia direito da situação pois era surda e muda e dava um 'tchau' para o rapaz sorrindo depois que fechava a porta, e como se soubesse, Kevin sorria acenando timidamente para ela. 
Aos poucos o doce aroma ia se distanciando, aos poucos seu sorriso ia sumindo, mas sabia que logo sentiria a temperatura morna de sua casa, o sol tocar sua pele, a brisa passar pelos seus cabelos, o cheiro das árvores e frutos, o gosto maravilhoso da comida caseira... e o amor doce, macio, morno, aconchegante... indescritível amor de sua querida mãe.



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