quinta-feira, 12 de agosto de 2010

O mundo de Kevin

"Imagine um mundo de escuridão, onde você não vê nada além da cor preta em toda a sua volta; um mundo de silêncio, onde você não escuta seus passos, a sua voz, não escuta nada. O único jeito de 'ver' esse mundo é sentir, sentir o cheiro, o gosto, a temperatura, a forma e a consistência das coisas. Esse é o mundo de Kevin."
Eram quase 12:30 da tarde daquele sábado fresco e ensolarado. Era o primeiro dia daquelas férias de Kevin, ele estava cansado por ter trabalhado durante 6 meses todos os dias, até mesmo nos fins de semana. O rapaz de 26 anos era um sommelier, ganhava bem, tinha uma vida confortável ao lado de sua mãe em uma casa não muito longe da cidade, o lugar era bem arborizado, tinha uma grande área aberta com a grama muito bem cuidada, haviam alguns cavalos, cães, aves e também algumas cabras. Ele estava do lado de fora, deitado em uma rede que estava presa entre duas grandes árvores de seu jardim, seus olhos estavam fechados, porém não estava dormindo, apenas apreciava a brisa fresca e leve passar, sentia o leve calor do sol em seu rosto, e também o doce aroma das frutas e flores que cresciam no jardim. Logo Kevin sentia o cheiro delicioso da comida de sua mãe, que estava na cozinha preparando um belo almoço para ambos, ela estava o observando da janela, sorrindo enquanto colocava água na panela. O jovem sommelier engolia a saliva, pois estava faminto e aquele aroma fazia aumentar ainda mais o apetite, parecia ter frango, batatas, cebola, tomate seco, arroz temperado, e outras coisas que tinham um delicioso aroma apetitoso. 



Kevin sentia a mão quente de sua mãe tocá-lo carinhosamente nos ombros, ele abria os olhos e dava um sorriso, sua mãe retribuía dando um outro, e assim andavam para dentro de casa abraçados nos ombros. Dona Mariella era uma mulher de 56 anos, seus cabelos eram grisalhos, era rechonchuda, possuía as bochechas rosadas e uma pele pálida, uma mulher de meia idade que amava seu filho mais do que tudo, e que adorava preparar uma refeição para o mesmo. 
Ao entrar naquela casa sentia-se um clima de paz e tranqüilidade, Kevin estava muito feliz, e isso fazia sua mãe ficar feliz. Ambos sentavam-se à mesa para almoçarem, próximo havia uma porta de correr que dava para o quintal e churrasqueira da casa, e de dentro da cozinha podia-se ver aquele belíssimo jardim. O sol adentrava por aquela porta, Kevin sentia aquela temperatura agradável tocar suas mãos que estavam sobre a mesa, o cheiro das árvores, flores e frutos se espalhavam dentro da casa pela brisa morna que passava pelas janelas, não havia momento mais aconchegante e delicioso de ser apreciado do que aquele, era realmente um almoço perfeito. 


A cozinha estava limpa, todas as louças estavam lavadas, secas e guardadas, o que sobrou daquele almoço já fora guardado para que assim pudessem apreciar aquela deliciosa comida mais tarde na janta. O relógio marcava 3:30 da tarde daquele sábado, o sol estava um pouco mais forte, mas ainda assim agradável. Dona Mariella estava sentada a mesa na qual haviam almoçado folheando alguns documentos, ela usava seu antigo óculos para enxergá-los bem, e parecia anotar algumas coisas em um papel, eram arquivos e documentos do trabalho de Kevin. Ela o ajudava bastante, pois trabalhava com ele, ela que o levava para os clientes, ela ajudava na escolha dos vinhos, ela fazia a parte mais burocrática no trabalho do sommelier. Kevin certamente tinha uma mãe admirável. 
Mariella olhava o relógio e passava a mão carinhosamente no filho que estava deitado no sofá da sala tirando um cochilo para acordá-lo, tinham que ir na cidade fazer algumas compras. Não demoravam muito entravam no carro, Kevin parecia sonolento e preguiçoso, sua mãe que estava já no banco do motorista dava uma risada e bagunçava os cabelos castanhos do filho, como se dissesse para parar de ser tão preguiçoso, Kevin apenas sorria passando a mão em seus cabelos logo em seguida. 
A cidade era um lugar bem diferente, a energia que era projetada não era tão tranqüila igual em sua casa, o cheiro era diferente, parecia ser sujo, não se sentia a luz quente do sol naquele lugar devido aos prédios, podia sentir a presença de inúmeras pessoas ao seu redor caminhando, a cidade, para Kevin, era um lugar rude e triste. 


Por sorte havia uma vaga para estacionar o carro em meio aquela rua movimentada. Saíam do carro, dona Mariella como sempre, andava segurando seu filho, dessa vez ambos estavam com seus braços entrelaçados e assim enfrentavam a grande multidão. A jornada na cidade começava em um banco, dona Mariella pagava as contas e também sacava algum dinheiro; depois iam para um supermercado, compravam produtos de limpeza, alimentos, e várias outras coisas; assim iam para uma loja de sapatos, pois Kevin estava precisando de alguns novos, e Mariella ajudava-o a escolher, o rapaz gostava dos mais confortáveis sem se importar se eram bonitos ou feios; passavam em uma lanchonete para comerem alguma coisa pois estavam famintos e demorariam um certo tempo até a janta, Kevin não gostava da comida da cidade, o gosto e o aroma não tinham aquele toque de amor e carinho que ele sentia da comida de sua mãe, mas mesmo assim ele gostava de apreciar, gostava de conhecer novos sabores; o último lugar era a lavanderia, havia deixado no dia anterior cobertores, lençóis e edredons nos quais eram mais complicados dela lavar, assim os recolhia, Kevin carregava as compras mais pesadas daquele dia, sua mãe o segurava pelo braço e assim caminhavam para o carro.
Dona Mariella soltava por um breve momento seu filho para que pudesse pegar a chave do carro em sua bolsa, o rapaz não saía do lugar, apenas virava para trás pois havia sentido um cheiro agradável e doce passar, curioso dava uns dois passos na direção da fonte daquele cheiro, e sem perceber trombava com um homem que carregava caixas com conteúdo frágil. Dona Mariella escutava um barulho de vidros quebrando, e rapidamente olhava para o lado, via seu filho sentado ao chão e as compras para fora das sacolas, via um homem irritado reclamando e lamentando sobre a vidraçaria que ele carregava na caixa... o homem xingava Kevin de tudo quanto é nome, o empurrava bruscamente como se estivesse desafiando Kevin para uma briga, o rapaz parecia perdido da situação, tinha medo de ficar de pé, sabia que aquele homem o derrubaria de novo. Correndo, Mariella afastava o homem alterado de seu filho tentando acalmá-lo, e depois ajudava seu filho a se levantar, ela não dizia nada, apenas dava um abraço forte no mesmo e fazia um carinho em sua cabeça, e, visto que estava mais calmo, ela sorria, e depois olhava para o sujeito, que estava impaciente pois queria resolver aquela situação na qual ele achava que Kevin tinha culpa. De uma forma calma, Mariella dizia segurando no braço de seu filho olhando fixamente para o sujeito raivoso:

"Imagine um mundo de escuridão, onde você não vê nada além da cor preta em toda a sua volta; um mundo de silêncio, onde você não escuta seus passos, a sua voz, não escuta nada. O único jeito de 'ver' esse mundo é sentir, sentir o cheiro, o gosto, a temperatura, a forma e a consistência das coisas. Esse é o mundo de Kevin."

O homem ficava confuso, ria do que ela dizia, debochava dos dois, e aquela dedicada mãe completava:"Kevin é cego e surdo desde que nasceu, senhor, por favor, não fique irritado com ele." O sujeito ficava pasmo por uns instantes, e depois muito arrependido, ele pedia desculpas, e se abaixava pegando as coisas que haviam caído.
O doce aroma parecia se aproximar um pouco, Kevin virava o rosto a procura da fonte, ele não podia ver, mas era uma bela jovem de longos cabelos loiros naturais ondulados, aquela situação havia chamado a atenção de algumas pessoas, inclusive da graciosa moça do doce aroma que tanto agradou o olfato de Kevin. Algumas pessoas ajudavam Mariella e seu filho a colocarem as coisas no carro, por um momento Kevin sentiu aquele doce cheiro ficar bem ao seu lado, era a moça que o ajudava a entrar no carro, não sabia direito da situação pois era surda e muda e dava um 'tchau' para o rapaz sorrindo depois que fechava a porta, e como se soubesse, Kevin sorria acenando timidamente para ela. 
Aos poucos o doce aroma ia se distanciando, aos poucos seu sorriso ia sumindo, mas sabia que logo sentiria a temperatura morna de sua casa, o sol tocar sua pele, a brisa passar pelos seus cabelos, o cheiro das árvores e frutos, o gosto maravilhoso da comida caseira... e o amor doce, macio, morno, aconchegante... indescritível amor de sua querida mãe.



Clique: